sábado, 9 de junho de 2012

Hoje é dia de rock

Ao querido elenco de "Hoje é dia de rock"

Sobre o fazer artístico, um dia Octávio Paz escreveu: "Não há cores nem sons em si desprovidos de significação: tocados pela mão do homem, mudam de natureza e penetram no mundo das obras. E todas as obras desembocam na significação; aquilo que o homem toca se tinge de intencionalidade: é um ir em direção a... O mundo do homem é o mundo do sentido. Tolera a ambiguidade, a contradição, a loucura ou a confusão, mas nunca a carência de sentido".

Talvez seja por isso que José Vicente criou uma personagem como Pedro, cujo caminho é a morte diante da impossibilidade do fazer artístico. Talvez seja por isso que mesmo diante de tantos desencontros, a peça "Hoje é dia de rock" se levanta, fazendo sentido para tantas pessoas que sentam à sua plateia às lágrimas e gargalhadas. Talvez seja por isso que, como espectadora da peça na última sexta-feira, eu visitava minha casa - a casa onde eu nasci para "ir em direção a...", mas que eu nunca deixarei de habitar. Obrigada "Hoje é dia de rock" por me receber. Nós estávamos na nossa casa. Foi um belo espetáculo!

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Ana Paula


Ontem conheci a Ana Paula, uma baiana simpática que, como tantos outros nordestinos, veio “tentar a vida” no Estado de São Paulo. Parei para tomar um sorvete na barraquinha onde ela trabalha e, em poucos minutos, parecíamos duas amigas. Desabafar com uma pessoa praticamente desconhecida é uma experiência interessantíssima e revela coisas surpreendentes sobre si mesmo. É uma prática que todos deveriam tentar.

Ana Paula contou-me que conheceu seu namorado pela internet e que ele lhe daria uma aliança de compromisso no dia dos namorados. Um rapaz bonito (ela me mostrou a foto dele pelo celular) que faz faculdade em São Carlos e mora em Guariba. Ana veio embora para o interior de São Paulo, em busca de trabalho e sustento, já que o emprego na sua cidade (próxima a Vitória da Conquista BA) é muito escasso. Deixou seus pais e duas irmãs mais novas que tão logo seguirão o mesmo caminho. O irmão mais velho rumou para o Mato Grosso. Ana veio para cá porque tem uma prima na região. As duas dividem uma morada em Pradópolis e todos os dias pegam um ônibus para Ribeirão Preto. Ana, para trabalhar na barraquinha de sorvetes; a prima, para trabalhar em uma loja de conveniência. Perguntei até que horas funcionava a barraquinha de sorvetes. “Até as 10 da noite”, ela respondeu. E me contou sobre o dia em que teve de juntar papelão para forrar o chão para dormir. O gerente exigiu que ela trabalhasse até as 2h da manhã e depois desse horário não havia mais ônibus para Pradópolis. Ele se recusou a pagar um moto-taxi e disse que ela poderia dormir no quartinho onde se guarda os mantimentos do sorvete. Sugeriu ainda, que ela juntasse os papelões das caixas de sorvete para forrar o chão. Ali, então, na verdade, sob os papelões, ela esperou o dia clarear, porque dormir era, praticamente, impossível. Agora, o gerente quer que ela trabalhe até as 2h um sábado por mês e garante que o quartinho de mantimentos fica à sua disposição. Ana ainda não sabe como irá lidar com essa situação. Ela está a procura de um lugar para dormir em Ribeirão. Enquanto isso, nós continuamos comprando sorvete e contribuindo para sua empregabilidade.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Lesadamente catártica?

Ainda catártica com “Lesados”, o espetáculo que assisti ontem no teatro Ribeirão Em Cena, acordo às pressas na manhã desta segunda-feira, para não chegar atrasada ao trabalho. Mas, como todas as segundas-feiras, chego atrasada, ligo o computador e retomo as pendências da última semana. Tomo um café e a única imagem que me vem à cabeça é a de uma pilha de malas sendo levada para cá e para lá. Quem assistiu a “Lesados” sabe do que eu estou falando. Mais do que dar cena à inação presente na humanidade cotidiana, a peça dá voz ao grito silencioso que ecoa dentro da gente todas as vezes que não sabemos o que nem como fazer – o grito dentro, que em vez de aguçar, desafina; em vez de afiar, corta. É uma peça obrigatória para quem deseja lutar contra essa realidade e fazer a diferença. Um texto-ação lindo, daqueles que a gente sempre diz para si mesmo, mas dificilmente coloca para fora. Um trabalho primoroso de ator e direção. Um show de criatividade. Indispensável.

A peça “Lesados” compõe a XI Mostra de Teatro Ribeirão Em Cena 2012, patrocinada pelas Empresas 3M, Bebidas Ipiranga, Citroen Independence e Noble Bioenergia.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Tem que continuar


Se os sonhos servem para nos fazer caminhar, as mulheres vermelhas iluminam o caminho

Trabalho no elenco de Mulheres Vermelhas, peça dirigida por Gilson Filho, da ONG de teatro Ribeirão Em Cena, que conta a história de mulheres militantes, fortes e engajadas, unidas à corrente histórica do Brasil, na busca por mais justiça e igualdade.

Há tantos aspectos para comentar sobre esse trabalho, que qualquer recorte por meu mero ponto de vista seria insuficiente para expressar o que ele verdadeiramente significa. Eu poderia comentar a peça sob o ponto de vista passional, por exemplo, expressando minhas emoções em relação ao seu processo de construção; sob o ponto de vista teórico, abordando fontes de estudo que sustentam o trabalho técnico envolvido; sob o ponto de vista jornalístico, enfatizando os fatos concretos que fundamentam a história; ou até mesmo sob um ponto de vista mítico, mais relacionado ao plano dos sonhos do que ao da realidade.

Neste momento, é esse embate entre sonhos e realidade que me interessa. Explico o motivo: mais do que uma narrativa dramatúrgica de fatos concretos vivenciados por mulheres reais da nossa história, Mulheres Vermelhas da luz a uma esperança, que em minhas décadas de vida eu nunca pude enxergar. A peça me transporta para outro lugar: um lugar onde jamais se ouve “eu não posso fazer nada”; onde a indignação leva as pessoas a praticarem ações cidadãs fortes; onde o pulso por igualdade social estremece cidades inteiras desenfreadas por justiça e o interesse geral sobrepõe-se ao particular. Nesse lugar, existe gente corajosa, capaz de fazer revolução para que as pessoas exerçam o seu papel de gente: um sonho para um país sem memória que não consegue fazer justiça em nome da história; mas pura realidade para quem lutou bravamente por isso, principalmente, no período coroado pelo golpe militar brasileiro, quando o coro pela liberdade e igualdade efervescia apesar da resistência.

Se os sonhos servem para nos fazer caminhar, Mulheres Vermelhas ilumina o caminho, como se cada história narrada dessa gente corajosa fosse, aos poucos, clareando a mancha imposta pelo furacão destruidor do poder que cerra os olhos e nos impossibilita de agir. Somos inseridos numa arena sem medida em que todos são protagonistas de uma única história em nome da nossa responsabilidade como pessoa humana.

O nosso coro é pelos heróis, cuja luta, cortinada pelo golpe militar, vislumbrava reformas de base que mudariam o curso deste país, re-significando oposições como “prisão versus liberdade”, “riqueza versus pobreza”, “opressor versus oprimido” entre tantas outras que nos arrancam do palco terreno da vida. Abramos as cortinas. Tem que continuar.

Marília Marcucci, 18 de janeiro de 2012.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Não vejo a hora: "Evoé! Retrato de um antropófago!"

Estreia neste dia 22 de novembro o documentário "Evoé! Retrato de um antropófago", que revela o perfil de José Celso, um diretor de teatro "louco, palhaço, livre" como ele mesmo diz. No último dia 9, o Estadão publicou uma matéria da jornalista Maria Eugênia de Menezes: "Vida e obra se misturam. Como se pudessem ser, de fato uma coisa só. Condutor absoluto da câmera, Zé Celso oferece uma espécie de súmula de seu pensamento: costura política, cultura, religião, drogas, amor. Em meio a tudo isso, lança pistas de como se tornou quem é. Ao longo de décadas, Zé Celso acumulou um extenso acervo sobre si mesmo. Programas de TV, imagens de suas peças, gravações que ele fez de episódios corriqueiros, quase banais. A esse material de arquivo, somaram-se entrevistas realizadas em algumas locações estratégicas: a Grécia, o sertão da Bahia, a praia de Alagoas onde o Bispo Sardinha foi devorado, o bairro paulistano do Bexiga. São alguns lugares que ajudam a desvendar uma intrincada personalidade, além de evocar referências marcantes na sua obra, como de Oswald de Andrade, Euclides da Cunha e do deus Dionísio.

Fico imaginando o grito de Oswald nesse documentário "Só a antropovagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente." Não vejo a hora de assistir e antropofagar o que Zé Celso tem a nos dizer. Enquanto isso, a ansiedade vai tomando conta. Guardo a página do jornal que fala do documentário e espero...

Marília Marcucci

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Consulta médica

Por Marília Marcucci

A porta do consultório se abre. O médico anuncia:
  Iolanda Machado.
Iolanda vai até a porta e entra:
-     Bom dia Doutor!
-    Bom dia! Estou com uma fome!
-     (Ela olha o relógio. São quase 11h). Essa hora da fome mesmo... (sorri).
-     Casada?
-     Não.
-     Filhos?
-     Não.
-     Por isso o sorriso jovem. A mulher depois que tem filho é que aparenta maior responsabilidade.
-     É verdade (sorriso).
-     Diga-me, qual é o seu problema?
-     Tenho me sentido muito mal fisicamente. Desde o começo do ano, sinto uma dor muito forte no corpo todo que começa nas articulações e vai se estendendo pelo corpo. Estive num reumatologista, fiz alguns exames e ele diagnosticou “fibromialgia”, me receitou um relaxante muscular que devo tomar todos os dias antes do dormir. Tenho me sentido melhor, há dois meses não sinto mais a dor. Mas semana passada, tive uma dor de cabeça muito intensa, que não passava com nenhum remédio.
-    De um lado só?
-     Sim, do lado esquerdo, a partir da região dos olhos. Então, fui a um pronto-atendimento e o médico de plantão diagnosticou uma enxaqueca, me receitou uma medicação na veia e pediu que eu consultasse um especialista, caso não melhorasse. A dor de cabeça tem voltado, por isso eu vim.
-     E a partir de quando isso começou? O que mudou na sua vida para ter desencadeado essas dores?
-     Foi depois que passei a ler bastante.
-     Ler? Ler o quê?
-     Literatura, filosofia, jornal. Depois que comecei a ler muito, meu pensamento vive borbulhando em vários assuntos ao mesmo tempo. Tenho vivido muito preocupada.
-     Preocupada com o quê?
-     Eu fico procurando entender as coisas, procurando entender o ser humano, suas atitudes? Esse mundo me incomoda bastante. É muito materialista, estão todos preocupados muito com o “capital”...
-     Com o “ter”.
-     Isso. Com o “ter”. E quando eu me vejo querendo “ter”, inserida nisso tudo, fico muito incomodada.
-     Entender o ser humano... O que é o humano para você?
-     Não sei?
-     Não é muita pretensão querer entender o humano?
-     É... (sorriso sem graça).
O médico pega uma caneta na mão e a solta contra a mesa. Pergunta:
-     O que é isso?
-     É a lei da gravidade.
-     A lei da gravidade... Existe uma força nessa caneta e uma força nessa mesa. Uma puxa em relação à outra... Quem é você para entender o humano? Humano... humano... (repetia).
-     (Sorriso sem graça) Me preocupo com as pessoas. Comigo. Sou um espelho de tudo.
-     Você sente a dor com as pessoas? Chora junto com elas?
-     Sinto. Bastante.
-     E você tenta ajudar essas pessoas?
-     O tempo todo. Sou sensível.
-     Mesmo que você não possa fazer nada?
-     Eu acho que eu sempre posso fazer alguma coisa e quando eu não consigo fazer, me culpo muito.
-     Se você vê um cachorrinho abandonado na rua, você fica triste?
-     Sim. Bastante.
-     E você faz alguma coisa?
-     Eu tento. Mas não consigo fazer. Sinto-me impotente e isso me incomoda muito.
-     E você está sempre procurando agradar todo mundo?
-     Sim.
-     Por quê?
-     Não sei. Quero que as pessoas vejam que eu sou boa e tenho medo de que elas descubram que eu não sou tão boa assim... Tenho medo que descubram minhas imperfeições. Quero ser agradável.
-     Você se sente sozinha? Abandonada?
-     Sim.
-     Por quê?
-     Ah...
-     E se eu disser que você não é ninguém? Que você não existe? Que você é apenas o que as pessoas constroem de você. Eu, por exemplo, não existo. Você é que me constrói.
-     Então por isso me preocupo tanto com os outros? Por isso eu fico querendo agradar, parecer boa? Para que as pessoas me construam de um modo bom?
-     Nossa! (Ele a encara com surpresa). Conta para mim, como é ser Deus? Deve ser muito difícil esse papel. Conta para mim como é que é!
-     É... (sorriso sem graça).
-     Mas ser Deus é muito difícil não é? Para que tanta pretensão?
-     É que o fato de alguns sofrerem tanto, não ter supridas suas necessidades básicas, me incomoda tanto...
-     Mas o que são essas necessidades básicas? Como é que você pode saber o que é necessidade básica para outra pessoa? O que é necessidade básica para você?
-     É comer, dormir, trabalhar. O cachorro abandonado, por exemplo, ele precisa de um teto, de comida, de cuidado.
-     Então para você o cachorro precisa de uma casa, de um teto, de alguém que cuide dele?
-     Sim.
-     E se eu disser que não, quem está certo, eu ou você? E a liberdade que ele tem de lutar pela vida, de cada dia ter que procurar algo para comer, cada dia dormir em um lugar. E essa liberdade não conta?
-     É...
-     Por mim, todos os cachorros deveriam viver nas ruas, com liberdade para fazer o que quiserem. O maior problema da gente é a falta de liberdade.
-     Entendo.
-     Eu costumo receitar remédios. Mas como você disse que gosta de ler. Vou receitar: Jean Paul Sartre. Você precisa entender o existencialismo. A pessoa que analisa a situação enquanto ela ocorre. Fenomenologia.
-     Sei. Sinto que preciso acreditar em alguma coisa. Ter alguma crença. Vejo que quem acredita em algo além dessa materialidade que estamos vivendo consegue entender melhor as coisas, sente-se mais completo...
-     (Novamente, ele a encara com surpresa). Eu já questionei muitas coisas, já questionei quem é Deus, já critiquei muito... E no fim, eu me vejo apenas em duas coisas: Deus e você. É para isso que estou aqui: para você – para os meus pacientes. Se eu disser que eu mando no tempo, você acredita?
-     (Sorri, sem graça) Eu acredito...
-     (Ele retira um bloco de notas da gaveta e escreve uma receita) Estou lhe receitando um remédio natural. Homeopatia. São 10 gotas duas vezes por dia. Vai arder um pouco, você gosta de vodca?
-     Gosto!
-     Cuidado para não acabar com o vidro em um só dia. Não vá se embriagar! (sorri). E, para leitura “existencialismo”. (Escreveu no verso da receita).
-     Obrigada.
-     Se tiver alguma contra-indicação, volte.
-     Pode deixar.
-     Você até que seria uma boa terapeuta... Estou com uma fome!
-     Imagina... É o horário! Até logo.
-     Até.

Eles dão um aperto de mão. O médico abre a porta. Ela deixa o consultório, com a receita na mão.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Coluna social ou produção de conteúdo?

Por Marília Marcucci

“Agora você pode contar para o mundo inteiro o que você faz e pensa. Você não é mais um anônimo sobre o qual ninguém quer saber ou se importa. Você pode compartilhar tudo, desde uma simples dor de cabeça até o nascimento de um filho – e o mundo todo vai ficar sabendo! Irão comentar... dizer o quanto estão felizes por você! Você finalmente será conhecida por aquilo que faz e gosta, sem precisar de jornal global! Você será sua própria jornalista, espectadora e editora. Não é maravilhoso?”. Alice concordou perdidamente, deu as mãos para o Facebook e iniciou uma nova vida!

Começou a dizer para todos os cantos o quanto ela era feliz e inteligente. O quanto gostava de música boa e quantos amigos legais ela tinha. E também o quanto trabalhava! Ela trabalhava muito, vivia numa correria louca e fazia questão de dividir o seu dia-a-dia com todo mundo. Dividindo, tudo ficava mais fácil. Era como se os seus espectadores a entendessem de verdade. Sua vida mudou completamente. Editá-la era muito divertido! Ela contava tudo o que fazia. E os amigos comentavam! Era maravilhoso! Todo mundo sabia o quanto ela era feliz e se conhecia!

E não era só a história de Alice que importava. As histórias dos seus amigos também eram importantes e ela participava bastante da vida deles. Sabia tudo o que acontecia. Elogiava suas conquistas, curtia seus entretenimentos, participava de tudo. Um dia, sua vizinha publicou a foto de um bolo tão maravilhoso que podia partilhar com ela o gosto do chocolate, sem colocar um pedaço que fosse na boca!

Alice conhecia o mundo também. Seus amigos viajavam bastante e ela passava horas degustando as fotos dos lugares por onde passavam. Ela sonhava em viajar para fora do país, só para fotografar seus momentos em tempo real e compartilhar com os amigos! “Imagina, eu, em Chicago, compartilhando tudo...”, sonhava.

Então, o Facebook, conferindo de perto essas facilidades, resolveu intervir. Enviou para Alice um conjunto de palavras estranhas, pedindo atenção para conteúdos escondidos diante de tanta rede social. Ele escreveu palavras como: “cultura digital”, “generosidade coletiva”, “sabedoria das multidões”, “produção de conteúdo”,
- Capitalistas sociais?
- Humanismo
macumba on line”, “capitalistas sociais”, “humanismo”. Será que esses conceitos cabem no mundo de Alice?