Por Marília Marcucci
Pensar na geração dos anos 2000 em relação à geração dos anos 60 ilumina uma porção gigantesca de diferenças, mas nenhuma delas é tão impactante quanto à visão de mundo. É a visão de mundo que rege nosso comportamento, nossos pontos de vista, nossa maneira de relativizar a “verdade” e entender a “realidade” – é aquilo que dá sentido ao encontro do sujeito-humano com o mundo.
Nos anos 60, por exemplo, a visão de mundo levava jovens de universidades brasileiras às ruas para protestarem contra a ordem social que se estabelecia injustamente entre as pessoas. Havia uma consciência por justiça – uma escolha por não fechar os olhos para a desigualdade. Nos anos 2000, a visão de mundo, ou falta dela, leva os jovens dessas mesmas universidades às ruas para arrecadarem dinheiro nos sinais de trânsito em comemoração à inserção na faculdade – um espetáculo regado a vodca e cerveja nos canteiros das ruas, para entretenimento do público passante acomodado nos carros com ar-condicionado.
Nesse espetáculo, figuram também os jovens panfletários, que longe das universidades e encapados por uniformes amarelos, trabalham em torno dos sinais distribuindo folhetos de propaganda para aquele mesmo público passante. Outros jovens passam o dia erguendo bandeiras e faixas enormes tingidas com as marcas dos carros.
Algum sujeito desse público passante é capaz de imaginar que nessas mesmas ruas seguiam milhares de homens e mulheres em passeatas de várias classes numa luta comum por um mundo mais justo? Para que as pessoas pudessem desenvolver suas visões de mundo sem que lhes fossem imposta uma ordem dominante? Para que o jovem erguesse, em vez da bandeira da marca automobilística, a bandeira de um país igual para pessoas iguais?
Algum sujeito passante pode imaginar que esses mesmos homens e mulheres enfrentavam cavalarias, cassetetes, chuvas de amoníaco, tiros e atropelamentos, mas seguiam firmes em direção a sua luta? Que lhes eram arrancados os sentidos, mas nunca a visão de mundo que construíram? Que se erguiam sempre olhando para o futuro dos outros, mas nunca para o próprio corpo que jorrava sangue?
Nenhum sujeito passante pode imaginar esse contexto de vida. A ordem dominante venceu qualquer tentativa de experimentá-lo e a visão de mundo foi dilaceradamente extraída e massacrada sob diversas formas de tortura. Torturas físicas, morais e psicológicas, escancaradas naquele tempo de passeadas, mas afloradas até hoje no âmago do sujeito-humano, cuja conjunção com o mundo lhe foi arrancada por meio das crueldades mais inimagináveis possíveis. Agressão, esvaziamento, esquecimento – é tudo o que restou.
A foice e o martelo não significam mais a união das classes revolucionárias, mas estão estampados nos folhetos de propaganda em função de argumentos de consumo. A visão de mundo dos jovens de 60 é reduzida a revolta, coragem, loucura; e o conceito de revolução é atribuído a carros inovadores dos anos 2000. Um pesadelo invisível, já que o sonho do público passante é ver seus filhos consumindo no núcleo dos “universitários” – ninguém sonha em assisti-los no núcleo dos “panfletários”, como se ambos encenassem espetáculos distintos – o primeiro, de carne e osso; o segundo, de papel.
Nesse pesadelo, qualquer vestígio de visão de mundo é como assistir a um espetáculo que não acontece. É imaginar, por um lado, como seria um mundo justo, e por outro, aceitar que isso que você imaginou acabou antes de existir. É reconhecer no público passante o esvaziamento da memória, a agressão à vida e o desconhecimento do mundo, calculado entre dois mil e sessenta, para ser apenas de passagem.
“Ao Gilson, diretor de “Mulheres Vermelhas” e fundador da ONG de teatro Ribeirão Em Cena, cujos personagens não estão neste mundo apenas de passagem”