Dia 18 de junho de 2010
Conheci Saramago na faculdade de letras, numa época em que minhas catarses eram provocadas por escritores que já não estavam mais entre nós, como Machado e Guimarães, por exemplo.
Eu estava lendo “Ensaio sobre a cegueira” e a pergunta surgida a cada trecho lido era: “Como alguém pode ter escrito isso?”.
Saramago. Eu me encantava pela beleza do nome, mágico, belo. Uma mistura de “sara-u” de poesia com “mago” de magia. Já estava apaixonada. Era um caminho sem volta.
Em 2008, quando assisti ao filme “Ensaio sobre a cegueira” dirigido pelo cineasta brasileiro Fernando Meireles, fiquei rememorando o livro, costurando as linhas de Saramago, admirando cada detalhe da sua arte, e à noite, quando deitei para dormir, não conseguia. Mais uma vez, Saramago provocava em mim a inquietude da leitora apaixonada pelo artista que deseja transformar o mundo.
O artista nunca diz adeus. Meu Saramago é imortal.
Ensaio sobre a cegueira: o filme
Por Marília Marcucci, em dezembro de 2008
− E se nós fossemos todos cegos?
− Mas nós somos todos cegos!
Quando foi perguntado a José Saramago qual seria o contexto que o teria motivado a escrever o livro Ensaio sobre a cegueira, ele respondeu que a idéia não partiu de nenhum problema específico da sociedade moderna ou passada.
Enquanto ele aguardava o prato num restaurante em Lisboa, ocorreu-lhe a pergunta: “e se nós fossemos todos cegos?”
Ele poderia ter parado por aí, mas imediatamente sucedeu-lhe a resposta: “mas nós somos todos cegos − É uma cegueira histórica. A história da humanidade é um desastre contínuo, porque não usamos a razão para estender a vida, mas para destruí-la de todas as maneiras, no plano privado e coletivo. Somos cegos da razão. A humanidade não merece a vida. Os instintos servem melhor aos animais do que a razão aos homens.”
Esse desconforto, arquitetado por Saramago no romance que lhe rendeu o prêmio Nobel de literatura, foi traduzido para o cinema, depois de muitas as resistências do escritor, que nunca quis autorizar a adaptação da obra.
Dirigido pelo cineasta Fernando Meirelles, o filme, estreado no ano passado, pôde nos trazer as cenas que tanto nos inquietaram como leitores de uma narrativa tão particular e enriquecida.
Saramago sempre rejeitou a idéia de ter suas obras adaptadas ao cinema porque não queria ver a “cara” das suas personagens, que segundo ele “não significam nada”.
Tão pouco significam que sequer têm nomes. O médico, a mulher do médico, o homem da venda preta, a rapariga dos óculos escuros, o menino, o ladrão. Personagens de lugar nenhum, sem tempo, nem história, num enredo em que somente os atos importam.
Atingidos por uma epidemia de cegueira branca, todos esses personagens são colocados à sobrevivência mais sórdida e elementar possível. Para evitar que a cegueira contagie outras pessoas, eles são postos num manicômio, sem qualquer assistência humana, onde a visão é o sentido mais doloroso possível, digna apenas da mulher do médico, que se finge de cega, para não abandonar o outro. Uma agulha no palheiro.
Se no livro, o conteúdo estético dessa trama fica por conta do trabalho árduo de Saramago com as palavras; no filme, o enquadramento das imagens, a falta de foco, a ausência de cores entre outros recursos cinematográficos, reforçam, a cada cena, a cegueira do homem-espectador, que não encontra qualquer explicação científica para a perda ou recuperação da vista; tal como não há uma explicação para a delinquência que atinge a humanidade, dia após dia.
Mais do que desesperadora e contagiosa, a cegueira branca dá luz à verdade e revela-se de forma tão intensa, que se não nos envergonha por ser humana; continua cegando-nos, para sempre, feito bichos na busca pela sobrevivência.
As vozes de José Saramago inseridas no texto foram extraídas da Sabatina com a Folha de 29 de novembro de 2008. Assista ao vídeo: www.folha.com.br/0833310
sexta-feira, 18 de junho de 2010
terça-feira, 15 de junho de 2010
Sonho de gente
Que terra era aquela de onde brotava a comida que alimentava pela vida as pessoas?
Que mata era aquela que acolhia o sono cheiroso de verde macio do corpo selvagem da gente?
Que rio era aquele que banhava a sujeira de dentro tornando cheirosas as cavas aconchegantes do caule vivo do campo?
E a música? A música gerada na conversa das águias no céu, nas asas dos insetos batendo entorno do vai e vem das folhagens e da água correndo em cima da terra molhada.
Numa dança. Dança que juntava as pernas da própria terra numa roda viva de ritmo, troca, encanto, onde os deuses se misturavam com a terra fazendo nascer um desejo único de gente igual, preciosa, sagrada.
Um Deus igual para pernas iguais feitas de gente forte para carregar orgulho de filho da terra viva de gente.
Por Marília Marcucci
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