A porta do consultório se abre. O médico anuncia:
- Iolanda Machado.
Iolanda vai até a porta e entra:
- Bom dia Doutor!
- Bom dia! Estou com uma fome!
- (Ela olha o relógio. São quase 11h). Essa hora da fome mesmo... (sorri).
- Casada?
- Não.
- Filhos?
- Não.
- Por isso o sorriso jovem. A mulher depois que tem filho é que aparenta maior responsabilidade.
- É verdade (sorriso).
- Diga-me, qual é o seu problema?
- Tenho me sentido muito mal fisicamente. Desde o começo do ano, sinto uma dor muito forte no corpo todo que começa nas articulações e vai se estendendo pelo corpo. Estive num reumatologista, fiz alguns exames e ele diagnosticou “fibromialgia”, me receitou um relaxante muscular que devo tomar todos os dias antes do dormir. Tenho me sentido melhor, há dois meses não sinto mais a dor. Mas semana passada, tive uma dor de cabeça muito intensa, que não passava com nenhum remédio.
- De um lado só?
- Sim, do lado esquerdo, a partir da região dos olhos. Então, fui a um pronto-atendimento e o médico de plantão diagnosticou uma enxaqueca, me receitou uma medicação na veia e pediu que eu consultasse um especialista, caso não melhorasse. A dor de cabeça tem voltado, por isso eu vim.
- E a partir de quando isso começou? O que mudou na sua vida para ter desencadeado essas dores?
- Foi depois que passei a ler bastante.
- Ler? Ler o quê?
- Literatura, filosofia, jornal. Depois que comecei a ler muito, meu pensamento vive borbulhando em vários assuntos ao mesmo tempo. Tenho vivido muito preocupada.
- Preocupada com o quê?
- Eu fico procurando entender as coisas, procurando entender o ser humano, suas atitudes? Esse mundo me incomoda bastante. É muito materialista, estão todos preocupados muito com o “capital”...
- Com o “ter”.
- Isso. Com o “ter”. E quando eu me vejo querendo “ter”, inserida nisso tudo, fico muito incomodada.
- Entender o ser humano... O que é o humano para você?
- Não sei?
- Não é muita pretensão querer entender o humano?
- É... (sorriso sem graça).
O médico pega uma caneta na mão e a solta contra a mesa. Pergunta:
- O que é isso?
- É a lei da gravidade.
- A lei da gravidade... Existe uma força nessa caneta e uma força nessa mesa. Uma puxa em relação à outra... Quem é você para entender o humano? Humano... humano... (repetia).
- (Sorriso sem graça) Me preocupo com as pessoas. Comigo. Sou um espelho de tudo.
- Você sente a dor com as pessoas? Chora junto com elas?
- Sinto. Bastante.
- E você tenta ajudar essas pessoas?
- O tempo todo. Sou sensível.
- Mesmo que você não possa fazer nada?
- Eu acho que eu sempre posso fazer alguma coisa e quando eu não consigo fazer, me culpo muito.
- Se você vê um cachorrinho abandonado na rua, você fica triste?
- Sim. Bastante.
- E você faz alguma coisa?
- Eu tento. Mas não consigo fazer. Sinto-me impotente e isso me incomoda muito.
- E você está sempre procurando agradar todo mundo?
- Sim.
- Por quê?
- Não sei. Quero que as pessoas vejam que eu sou boa e tenho medo de que elas descubram que eu não sou tão boa assim... Tenho medo que descubram minhas imperfeições. Quero ser agradável.
- Você se sente sozinha? Abandonada?
- Sim.
- Por quê?
- Ah...
- E se eu disser que você não é ninguém? Que você não existe? Que você é apenas o que as pessoas constroem de você. Eu, por exemplo, não existo. Você é que me constrói.
- Então por isso me preocupo tanto com os outros? Por isso eu fico querendo agradar, parecer boa? Para que as pessoas me construam de um modo bom?
- Nossa! (Ele a encara com surpresa). Conta para mim, como é ser Deus? Deve ser muito difícil esse papel. Conta para mim como é que é!
- É... (sorriso sem graça).
- Mas ser Deus é muito difícil não é? Para que tanta pretensão?
- É que o fato de alguns sofrerem tanto, não ter supridas suas necessidades básicas, me incomoda tanto...
- Mas o que são essas necessidades básicas? Como é que você pode saber o que é necessidade básica para outra pessoa? O que é necessidade básica para você?
- É comer, dormir, trabalhar. O cachorro abandonado, por exemplo, ele precisa de um teto, de comida, de cuidado.
- Então para você o cachorro precisa de uma casa, de um teto, de alguém que cuide dele?
- Sim.
- E se eu disser que não, quem está certo, eu ou você? E a liberdade que ele tem de lutar pela vida, de cada dia ter que procurar algo para comer, cada dia dormir em um lugar. E essa liberdade não conta?
- É...
- Por mim, todos os cachorros deveriam viver nas ruas, com liberdade para fazer o que quiserem. O maior problema da gente é a falta de liberdade.
- Entendo.
- Eu costumo receitar remédios. Mas como você disse que gosta de ler. Vou receitar: Jean Paul Sartre. Você precisa entender o existencialismo. A pessoa que analisa a situação enquanto ela ocorre. Fenomenologia.
- Sei. Sinto que preciso acreditar em alguma coisa. Ter alguma crença. Vejo que quem acredita em algo além dessa materialidade que estamos vivendo consegue entender melhor as coisas, sente-se mais completo...
- (Novamente, ele a encara com surpresa). Eu já questionei muitas coisas, já questionei quem é Deus, já critiquei muito... E no fim, eu me vejo apenas em duas coisas: Deus e você. É para isso que estou aqui: para você – para os meus pacientes. Se eu disser que eu mando no tempo, você acredita?
- (Sorri, sem graça) Eu acredito...
- (Ele retira um bloco de notas da gaveta e escreve uma receita) Estou lhe receitando um remédio natural. Homeopatia. São 10 gotas duas vezes por dia. Vai arder um pouco, você gosta de vodca?
- Gosto!
- Cuidado para não acabar com o vidro em um só dia. Não vá se embriagar! (sorri). E, para leitura “existencialismo”. (Escreveu no verso da receita).
- Obrigada.
- Se tiver alguma contra-indicação, volte.
- Pode deixar.
- Você até que seria uma boa terapeuta... Estou com uma fome!
- Imagina... É o horário! Até logo.
- Até.
Eles dão um aperto de mão. O médico abre a porta. Ela deixa o consultório, com a receita na mão.
Nossa, lendo me deu uma falta de ar, a cada linha me sentia eu na história [só q não tão boa quanto Iolanda rssrrsrs], pegou-me de surpresa...
ResponderExcluirCoitada da Iolanda! A dor de cabeça parece pequena diante de tanta de tanta inquietação. Gostei do olhar critico do médico, fora do convencional! Tudo me fez refletir, me fez rir.
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