quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Consulta médica

Por Marília Marcucci

A porta do consultório se abre. O médico anuncia:
  Iolanda Machado.
Iolanda vai até a porta e entra:
-     Bom dia Doutor!
-    Bom dia! Estou com uma fome!
-     (Ela olha o relógio. São quase 11h). Essa hora da fome mesmo... (sorri).
-     Casada?
-     Não.
-     Filhos?
-     Não.
-     Por isso o sorriso jovem. A mulher depois que tem filho é que aparenta maior responsabilidade.
-     É verdade (sorriso).
-     Diga-me, qual é o seu problema?
-     Tenho me sentido muito mal fisicamente. Desde o começo do ano, sinto uma dor muito forte no corpo todo que começa nas articulações e vai se estendendo pelo corpo. Estive num reumatologista, fiz alguns exames e ele diagnosticou “fibromialgia”, me receitou um relaxante muscular que devo tomar todos os dias antes do dormir. Tenho me sentido melhor, há dois meses não sinto mais a dor. Mas semana passada, tive uma dor de cabeça muito intensa, que não passava com nenhum remédio.
-    De um lado só?
-     Sim, do lado esquerdo, a partir da região dos olhos. Então, fui a um pronto-atendimento e o médico de plantão diagnosticou uma enxaqueca, me receitou uma medicação na veia e pediu que eu consultasse um especialista, caso não melhorasse. A dor de cabeça tem voltado, por isso eu vim.
-     E a partir de quando isso começou? O que mudou na sua vida para ter desencadeado essas dores?
-     Foi depois que passei a ler bastante.
-     Ler? Ler o quê?
-     Literatura, filosofia, jornal. Depois que comecei a ler muito, meu pensamento vive borbulhando em vários assuntos ao mesmo tempo. Tenho vivido muito preocupada.
-     Preocupada com o quê?
-     Eu fico procurando entender as coisas, procurando entender o ser humano, suas atitudes? Esse mundo me incomoda bastante. É muito materialista, estão todos preocupados muito com o “capital”...
-     Com o “ter”.
-     Isso. Com o “ter”. E quando eu me vejo querendo “ter”, inserida nisso tudo, fico muito incomodada.
-     Entender o ser humano... O que é o humano para você?
-     Não sei?
-     Não é muita pretensão querer entender o humano?
-     É... (sorriso sem graça).
O médico pega uma caneta na mão e a solta contra a mesa. Pergunta:
-     O que é isso?
-     É a lei da gravidade.
-     A lei da gravidade... Existe uma força nessa caneta e uma força nessa mesa. Uma puxa em relação à outra... Quem é você para entender o humano? Humano... humano... (repetia).
-     (Sorriso sem graça) Me preocupo com as pessoas. Comigo. Sou um espelho de tudo.
-     Você sente a dor com as pessoas? Chora junto com elas?
-     Sinto. Bastante.
-     E você tenta ajudar essas pessoas?
-     O tempo todo. Sou sensível.
-     Mesmo que você não possa fazer nada?
-     Eu acho que eu sempre posso fazer alguma coisa e quando eu não consigo fazer, me culpo muito.
-     Se você vê um cachorrinho abandonado na rua, você fica triste?
-     Sim. Bastante.
-     E você faz alguma coisa?
-     Eu tento. Mas não consigo fazer. Sinto-me impotente e isso me incomoda muito.
-     E você está sempre procurando agradar todo mundo?
-     Sim.
-     Por quê?
-     Não sei. Quero que as pessoas vejam que eu sou boa e tenho medo de que elas descubram que eu não sou tão boa assim... Tenho medo que descubram minhas imperfeições. Quero ser agradável.
-     Você se sente sozinha? Abandonada?
-     Sim.
-     Por quê?
-     Ah...
-     E se eu disser que você não é ninguém? Que você não existe? Que você é apenas o que as pessoas constroem de você. Eu, por exemplo, não existo. Você é que me constrói.
-     Então por isso me preocupo tanto com os outros? Por isso eu fico querendo agradar, parecer boa? Para que as pessoas me construam de um modo bom?
-     Nossa! (Ele a encara com surpresa). Conta para mim, como é ser Deus? Deve ser muito difícil esse papel. Conta para mim como é que é!
-     É... (sorriso sem graça).
-     Mas ser Deus é muito difícil não é? Para que tanta pretensão?
-     É que o fato de alguns sofrerem tanto, não ter supridas suas necessidades básicas, me incomoda tanto...
-     Mas o que são essas necessidades básicas? Como é que você pode saber o que é necessidade básica para outra pessoa? O que é necessidade básica para você?
-     É comer, dormir, trabalhar. O cachorro abandonado, por exemplo, ele precisa de um teto, de comida, de cuidado.
-     Então para você o cachorro precisa de uma casa, de um teto, de alguém que cuide dele?
-     Sim.
-     E se eu disser que não, quem está certo, eu ou você? E a liberdade que ele tem de lutar pela vida, de cada dia ter que procurar algo para comer, cada dia dormir em um lugar. E essa liberdade não conta?
-     É...
-     Por mim, todos os cachorros deveriam viver nas ruas, com liberdade para fazer o que quiserem. O maior problema da gente é a falta de liberdade.
-     Entendo.
-     Eu costumo receitar remédios. Mas como você disse que gosta de ler. Vou receitar: Jean Paul Sartre. Você precisa entender o existencialismo. A pessoa que analisa a situação enquanto ela ocorre. Fenomenologia.
-     Sei. Sinto que preciso acreditar em alguma coisa. Ter alguma crença. Vejo que quem acredita em algo além dessa materialidade que estamos vivendo consegue entender melhor as coisas, sente-se mais completo...
-     (Novamente, ele a encara com surpresa). Eu já questionei muitas coisas, já questionei quem é Deus, já critiquei muito... E no fim, eu me vejo apenas em duas coisas: Deus e você. É para isso que estou aqui: para você – para os meus pacientes. Se eu disser que eu mando no tempo, você acredita?
-     (Sorri, sem graça) Eu acredito...
-     (Ele retira um bloco de notas da gaveta e escreve uma receita) Estou lhe receitando um remédio natural. Homeopatia. São 10 gotas duas vezes por dia. Vai arder um pouco, você gosta de vodca?
-     Gosto!
-     Cuidado para não acabar com o vidro em um só dia. Não vá se embriagar! (sorri). E, para leitura “existencialismo”. (Escreveu no verso da receita).
-     Obrigada.
-     Se tiver alguma contra-indicação, volte.
-     Pode deixar.
-     Você até que seria uma boa terapeuta... Estou com uma fome!
-     Imagina... É o horário! Até logo.
-     Até.

Eles dão um aperto de mão. O médico abre a porta. Ela deixa o consultório, com a receita na mão.

2 comentários:

  1. Nossa, lendo me deu uma falta de ar, a cada linha me sentia eu na história [só q não tão boa quanto Iolanda rssrrsrs], pegou-me de surpresa...

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  2. Coitada da Iolanda! A dor de cabeça parece pequena diante de tanta de tanta inquietação. Gostei do olhar critico do médico, fora do convencional! Tudo me fez refletir, me fez rir.

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